CRIANÇA COM LESÃO CEREBRAL

CRIANÇA COM LESÃO CEREBRAL.

Este livro foi escrito, na sua primeira versão, há onze anos. Muito se alterou desde então no cenário dos deficientes. Assim, está hoje fora de dúvida que o número absoluto de crianças com lesão cerebral foi manifestamente reduzido neste decénio. Sabemos que muitos factores contribuíram para isso desde o aconselhamento em genética humana, a vacina contra a rubéola e a profilaxia da incom¬patibilidade Rhesus até à obstetrícia centrada nos recém-nascidos, à medicina perinatal e aos diversos programas de exame neuropediátrico, bioquímico. Assistimos, portanto, a progressos na medicina, êxitos em inúmeras formas de terapia, no âmbito da pedagogia terapêutica, mas também melhorias substanciais na segurança social. O sistema diferenciado de acompanhamento com infantários especiais, escolas especiais, terapia ocupacional e oficinas protegidas tem-se alargado e pode ser já considerado completo em muitas regiões. Quadros clínicos que ainda há anos eram significativos, no aspecto quantitativo, quase que desapareceram, a lesão cerebral mínima, a disfunção cerebral mínima foi aparentemente descoberta de novo, pelo menos foi novamente definida e, desse modo, foi esclarecido um campo que anteriormente pouca atenção merecia. Apesar disso, para cada um dos casos, os cuidados não se tomaram significativamente menores, surgiram novas questões e di¬ficuldades de que mal se suspeitava anteriormente, quando se tratava sobretudo de crianças. Trata-se aqui, sobretudo, da problemática da idade e da integração social e profissional com ela relacionada, tanto do jovem como do adulto. Este livro tornou-se, por assim dizer, mais velho com o seu autor e com uma grande parte das crianças por ele acompanhadas. Também os seus pais ficaram, entretanto, mais VIII velhos. Do mesmo modo devem ser também apresentadas as expe¬riências que a esse respeito se fizeram. O significado do provérbio «Criança pequena – pequenos cuidados – criança grande – grandes cuidados» tornou-se, para todos nós, muito claro. Onze anos são um longo período na vida de uma criança com lesão cerebral. Também a pessoa que a trata seja, ela professor, educador, terapeuta, médico ou psicólogo mas, sobretudo, mãe e pai sentirá o desenvolvimento de uma criança, durante esse período de tempo, como uma pesada ta¬refa. A experiência não traz apenas mais conhecimentos; ela traz também o perigo da resignação, que é também o produto deste longo período. Nesta nova edição muito foi acrescentado, alterado, adaptado. Algumas partes permanecem sem alteração dado que, em nossa opi¬nião, a informação original mantém-se actual. Este livro é muito pessoal e, por isso, subjectivo. No fundo, o título também devia ser alterado pois a criança com lesão cerebral evoluiu, entretanto, para jovem e para adulto; e – isto é um conheci¬mento dos anos passados – quem considera apenas a criança passa ao lado de cuidados, necessidades, angústias e deveres essenciais. Os congressos, colóquios, livros, filmes, artigos e discursos a esse respeito são actualmente em grande número. A criança com lesão cerebral tornou-se interessante e lucrativa para a medicina, psicologia, pedagogia, sociologia e política. Quando surgiu, na sua primeira edição, este livro era um dos primeiros sobre este tema. Actualmente, há uma multiplicidade de artigos e livros em todos os domínios da pedagogia, sociologia, medicina, etc. O tema é actual e é proporcionalmente desprovido do interesse de muitos. Infelizmente, também daqueles a quem esta área serve de emprego, ou daqueles que nela querem ingressar. Para mui¬tos, hoje, o seu compromisso de simpatia para com o deficiente é como que um traje moderno que assenta bem. Isoladamente, à margem da cena, há manifestações que deixam reconhecer uma espécie de superideologia da criança deficiente e um transbordar de exigências ao Estado e à Sociedade. Os proble¬mas, sem dúvida, já não são hoje superados somente com caridade, mas com justiça. O percurso até agora foi difícil e continuará ainda a sê-lo.

Este livro não está concebido como um manual, como uma catalogação de diagnósticos, sintomas e possibilidades terapêuticas. Tem muito mais a função de salientar os mais importantes proble¬mas práticos, dar referências e apoio relativamente a formas de com-portamento e a desenvolvimentos, aproximar mais os parentes e edu¬cadores da criança e, a partir do conhecimento do pormenor, chegar a uma reflexão complexa. Ainda não por toda a parte, mas já em satisfatória medida, o Estado e a Sociedade reconheceram que a criança deficiente devido a lesão cerebral é um dos maiores deveres sociais. As listas de inten¬ções deviam ser feitas com objectividade e realismo, adaptadas às possibilidades da sociedade e, fundamentalmente, ser sinceras. A euforia utópica, a negação da realidade não adiantam a nin¬guém; contudo, sem conhecimentos sólidos dos vários problemas e sem energia para o novo, demasiado incipiente trabalho, o idealismo permanecerá, terá mesmo que permanecer, uma caixa vazia. Viena, Fevereiro de 1980 Andreas Rett e Horst Seidler Posfácio à 5ª edição O que anteriormente foi dito continua a ser válido para nós. Se ficou comprovado que a sociedade tem que ajudar a superar os problemas, então pode dizer-se que a evolução dos últimos anos trouxe grandes progressos sociais, legais e institucionais. Neste período, desenhou-se também o sistema dentro do qual o deficiente encontra, desde o princípio, as facilidades necessárias ao desenrolar da sua vida. Que este sistema tem que ser amplamente diferenciado, que tem que considerar todos os problemas individuais do desenvolvi¬mento dos deficientes e da sua família é uma consequência da qual também têm estado conscientes os responsáveis políticos deste país. Capítulo 1 A CRIANÇA COM LESÃO CEREBRAL Noção e definição Para muitos, esta noção pode soar hoje a qualquer coisa de antiquado e ultrapassado, até mesmo anti-social. Mesmo a designa¬ção actual de «deficiente» é já uma recusa de discriminação social. Contudo, parece quase tão impossível como provar a qua¬dratura do círculo encontrar uma noção tão perfeita que satisfaça todas as exigências de uma definição precisa, válida relativamente a uma base ampla e, apesar de tudo, não exagerada. A mesma devia, por um lado, deixar transparecer a presença de uma perturbação orgânica do sistema nervoso central, mas, por outro lado, não levar de imediato a ideias prematuras de desespero biológico e social. Quanto menor foi, noutros tempos, o interesse por estas perturba¬ções, mais elas foram postas de modo descuidado nos dois grandes sacos de «atrasado mental» e «traumatismo de parto». O facto de haver vozes que se manifestam contra a utilização dos termos «doente» e «doença» para as lesões cerebrais revela que existe, de facto, um mecanismo de repressão, que contudo dificil¬mente atingiria qualquer objectivo, dado que a fuga violenta da reali¬dade, por tão dramática, ultrapassa os limites. A recusa da noção de doença tem as suas causas psicológicas. As mesmas assentam no facto de, para muitos pais e tutores, a palavra «doença» estar relacionada com terapia, cura, médico, obser¬vação e medicamentos; contudo, aqui o papel da medicina não é reconhecido, pois pretendem não haver nada para tratar. Mas, em parte, este raciocínio tem a sua justificação, uma vez que a chamada medicina escolar muito pouco se empenhou nos 2 inúmeros problemas das crianças com lesão cerebral. Insiste, e in¬siste frequentemente, apenas no diagnóstico e isso é demasiado pouco. Também pode ter aqui a sua importância o facto de muitas deficiências orgânico-cerebrais, no sentido da medicina, não serem curáveis. A recusa radical da noção de doença veio depois a ser posta em causa, mas com limitações, dado que houve necessidade de um trabalho de esclarecimento de dez anos, para fazer compreender aos homens da nossa sociedade que as crianças com lesão cerebral não são indivíduos que se carregam como uma culpa antiga, mas crian¬ças com doenças, no sentido exacto do termo, e, além disso, com perturbações que podem atingir fatalmente uma família. Somente através da alteração dos rótulos não se muda o conteúdo. Também no acompanhamento de uma criança com lesão cerebral a mentira do rótulo só tem efeito por pouco tempo.

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Importante é também, hoje, a noção de desenvolvimento per¬turbado. Distingue-se da expressão «cérebro lesionado» pelo facto de esta conter a definição da lesão e a sua localização, enquanto que a expressão «desenvolvimento perturbado» revela que a evolução di¬nâmica do crescimento e desenvolvimento está interrompida, pertur¬bada, ou apenas afectada. Em compensação, também a palavra «per¬turbação» pode ser mais adequada do que a palavra «lesão», pois permite sempre ainda a regeneração, a reparação, o restabeleci¬mento e a melhoria. É um conhecimento essencial de fisiologia que a célula nervo¬sa somente permite uma regeneração e reparação muito limitadas, e que a célula nervosa morta não tem essa possibilidade. Fixam-se aqui os limites do desenvolvimento, aqui fica depois a lesão que, por seu lado, tem as suas consequências com as quais têm que conviver a pessoa afectada e o seu envolvimento. Se considerarmos a profissão do médico, em princípio, como um trabalho social e se defendermos que, conforme a moderna psi¬quiatria, também as crianças intelectualmente diminuídas são um problema profundamente social relacionado com a pedagogia, a psi-cologia, a neurofisiologia, a teologia, até a meteorologia, não pode o médico actuar fora do sistema dos educadores. Naturalmente com o pressuposto que ele vê a sua tarefa não apenas no aspecto do diagnóstico, mas como um trabalho social, no sentido mais lato. 3 Até agora, não conseguiu ainda encontrar-se, em nenhuma língua, uma versão oficial definitiva e genericamente uniforme. Se no título do livro nos ficamos pela «Criança com lesão cerebral» é porque isso não é evidentemente nenhum postulado, ou uma concepção do mundo, mas é como que uma hipótese de trabalho. E o leitor pode, através do seu raciocínio, encontrar a sua própria noção. Mas se, como não é raro acontecer, o diagnóstico for entendido logo como uma discriminação, uma apreciação das possibilidades e capacidades físicas, mentais e intelectuais, com o pretexto da partici¬pação dos deficientes na sociedade, é utilizada com fins diferentes, sendo depois difícil reconhecer o médico como a primeira etapa na vida de um deficiente. Pode ser sempre possível melhorar apenas funções e darem-se assim oportunidades; contudo, para isso, é necessária a observação, o teste, a sondagem das capacidades e a análise do problema. A criança com lesão cerebral e a sua família deviam ser educadas, ou acarinhadas não só relativamente a forças mágicas mas no sentido de cada criança, bem como os seus familiares, sentirem a necessidade do êxito da experiência. Contudo, é muito clara aqui a diferença entre esgotamento das capacidades e exploração das capacidades. São também várias as tentativas de classificação sistemática dos quadros patológicos. Aqui deve remeter-se para a origem tempo¬ral que, de acordo com a natureza, contém uma classificação muito rudimentar em doenças pré, pen e pós-natais. Antes, durante, e após o parto isso pode ser, hoje, apenas mais um complemento no sentido de uma referência ao tempo da génese da lesão. Uma classificação com base em lesões físicas, ou psíquicas e mentais é superficial e insuficiente, sobretudo se se considerar que há perturbações que surgem apenas isoladamente, sem ligações trans¬versais, e sem repercussões nas restantes áreas. As classificações segundo o nível de inteligência final, como as que são sempre feitas, com análogas consequências no acompanha¬mento pedagógico, são precárias se o quociente de inteligência for aplicado como único parâmetro. Sabemos, contudo, que há diferen¬ças extremamente grandes quanto às dimensões que compõem a chamada «Inteligência» global. Se aceitarmos as possibilidades, que podem estar na origem da perturbação, como sistema de classifica¬ção, então temos hoje conhecimento de uma quantidade de possibili- 4 dades: as causas inflamatórias ou infecciosas, vasculares, enzimáticas, metabólicas, traumáticas, hormonais, genéticas, degenerativas, espe¬cíficas de grupos sanguíneos, de privação e as sociais devem men¬cionar-se como as essenciais. Mas, também aqui, não há somente perturbações que derivam de uma só causa, mas, frequentemente, também a associação simul¬tânea ou consecutiva de várias causas, como a etiologia múltipla. Apesar do número de causas diversas, dos diversos momentos de acção, que nós podemos situar, há ainda casos cuja origem não é clara. Contudo, relativamente a muitos casos, é possível hoje seguir o rasto dessa cadeia de causas que estão interligadas entre si, como elos de uma cadeia. Está fora de dúvida que, nos últimos dez anos, foi dado um grande passo em frente no que respeita ao diagnóstico. Contudo, o que se toma cada vez mais claro é o facto de, dentro de quadros clínicos etiologicamente tão divergentes, se conti¬nuarem sempre a encontrar grupos, os chamados sintomas axiais que, sobretudo no âmbito do comportamento, surgem em resultado de diferentes perturbações localizadas no sistema nervoso central. Diversos tipos de doença exigem medidas diversas para o seu acompanhamento. Estas diferentes exigências levam a objectivos diferentes a atingir e, é por isso lógico e legítimo que, desta diversi¬ficação, se formem vários interesses. É lícito pensar-se que hoje temos uma necessidade impres¬cindível desta associação de interesses, mas que os subgrupos, cada vez mais fortes, levam muitas vezes a uma dispersão das exigências e dos deveres de um modo geral demasiados, pelo que é bem com¬preensível a necessidade de organização de topo. O «Bundesbeirat» para deficientes, na Áustria, é uma associação de cuidados e interes¬ses comuns. Para os sócios está em primeiro plano o futuro dos próprios filhos. Isto é inteiramente compreensível. Contudo, o conhecimento de que há outros com sorte semelhante, ou igual, e que existem associações para defesa de interesses comuns, que podem dar, a cada um por si, apoio e auxilio, informação e conselho, não deve ser esquecido por cada um de nós.

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