ALIANÇAS E LUTAS EM JOGO NO TURISMO
Neste último capítulo, busco sistematizar os dados, recuperando algumas categorias estruturantes das percepções e representações que os sitiantes mantêm sobre si mesmos, o território rural e as relações com outros grupos sociais, e, paralelamente, sublinhando as formas pelas quais eles vêm ressignificando o que é ser sitiante e viver no sítio. Nessa perspectiva, procuro responder as seguintes questões: Como são construídas as relações sociais com os agentes com os quais os sitiantes entraram em interação desde a inserção na oferta turística? O que diferencia essas relações daquelas que ocorrem no circuito interno de circulação de dádivas na Comunidade? E, por último, como a lógica da dádiva dialoga com a racionalidade mercantil? Essas questões emergiram da observação que a produção e o consumo são duas faces de um processo circular (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2006 [1979]), que une produtores e consumidores, citadinos e sitiantes. E que esses agentes influenciam-se mutuamente e são ambos influenciados pela lógica do mercado e pela dinâmica das dádivas, dentro da produção e consumo da oferta turística em Areia. Com efeito, não se pode pensar na natureza do trabalho associado ao turismo, sem considerar que hoje há um interesse renovado pela ruralidade e suas representações, ou seja, ela se tornou um produto simbólico-cultural, isto é, cenário e tema de práticas de lazer e consumo, inclusive em espaços urbanos (ALÉM, 1996; PAULA, 1998). A integração do “mundo rural” ao mercado de bens simbólico-culturais, como discutido anteriormente, foi possível graças ao processo (em curso) de ressignificação do “mundo rural”, do qual pelo menos parte dos sitiantes da Chã de Jardim estão participando ativamente.
Nesse sentido, sugiro que há vários tipos e níveis de solidariedade em jogo no turismo em Areia. Considerando as relações entre os sitiantes da Comunidade e outros grupos sociais, observa-se que a “força invisível” da reciprocidade funciona como uma onda, propagando-se do núcleo do microssistema – onde age com mais potência, graças às relações de dominação simbólica, à adesão à campesinidade e aos valores partilhados por aqueles que estão mais próximo do centro propagador -, para as bordas, onde atinge de forma pontual e tênue clientes e turistas anônimos. A despeito do fato de que todos os agentes envolvidos no turismo estejam em contato com a lógica mercantil, que atua de forma massiva dentro do mercado capitalista no qual todos estão inseridos, as duas dinâmicas – da dádiva e do mercado, parecem dialogar e se nutrir uma da outra, gerando uma realidade ambivalente. Para sustentar tais argumentos e evidenciar as ambivalências e as ambiguidades presentes nas relações entre a troca de dons e o mercado do turismo, refletidas na instrumentalização ou racionalização da dádiva, beirando o “clientelismo” e se confundindo com a controversa prática do “jeitinho”, proponho analisar as práticas adotadas pelos sitiantes a partir: 1) da inserção deles na rede de solidariedade do mercado de turismo, viabilizadas e (re)configuradas a partir do Restaurante Vó Maria; 2) da análise das “alquimias” que ocorrem por meio das trocas simbólicas; 3) das formas que adotam para subverter o discurso dominante sobre a relação cidade-campo, ressignificando o que é ser “matuto”, “do sítio”, trabalhar e viver no campo. A divisão e a apresentação desse capítulo seguem exatamente essa sequência.
OS SITIANTES NA REDE DE SOLIDARIEDADE DO MERCADO TURÍSTICO
Agentes implicados na produção e consumo da oferta turística: esboço de uma tipologia Os atores envolvidos no jogo do turismo em Areia já foram mencionados e a atuação de alguns deles foi analisada no Capítulo 5. Nesse tópico proponho uma visão mais panorâmica, o que significa dizer que busco identificar o conjunto de atores em relação uns aos outros e agrupá-los em função do papel que cada um desempenha. Trata-se de um esforço de sistematização por meio de um esboço de uma tipologia, que pode aclarar algumas interpretações já apresentadas e facilitar o entendimento das posições, das alianças e disputas entre os agentes no “campo” do mercado turístico e no espaço social abrangente. Assumo o entendimento de que o espaço social é uma representação na qual “os agentes e grupos de agentes são assim definidos pelas suas posições relativas neste espaço” (BOURDIEU, 2004, p. 134). Posições essas assentadas a partir do volume total de capital, da distribuição relativa dos tipos de capital (econômico, social, cultural e simbólico) (BOURDIEU, 2004).